Esporte | Fórmula 1

Sábado, 27 de Abril de 2024

Senna, 30 anos - Capítulo 3: talento de Schumacher e malandragem da Benetton pressionam o brasileiro

No terceiro texto da série especial sobre os 30 anos do acidente fatal, Livio Oricchio conta como o piloto alemão e sua equipe fizeram aumentar a tensão nas pistas

Em Interlagos, na primeira corrida, Senna descobre que a principal força da F1 era, agora, a Benetton, de Schumacher.

Vou me estender propositalmente na descrição do andamento do GP Brasil de 1994 para depois discutirmos melhor os sérios problemas de Senna e da Williams, no início da temporada, e que colaborariam para o desfecho da história, o acidente fatal em Ímola.

Faltavam 16 voltas para o encerramento do GP Brasil, prova de abertura do campeonato, quando Senna, sobre a zebra, acelerou um pouco mais do normal, na saída da curva Junção, em Interlagos, como reconheceu, e sua Williams FW16-Renault lançou a traseira para fora, fazendo-o rodar na pista e abandonar a competição.

Lembre-se de que aquela era a primeira prova em que o controle de tração estava proibido. Bem, ao menos para a maioria. Você entenderá logo mais.

Volta 56. Michael Schumacher, com a Benetton B194-Ford, liderava com Senna um pouco atrás. Apesar de todas as dificuldades já descritas com o carro, graças ao seu talento, Senna estabelecera a pole position do GP Brasil, na sua estreia na Williams, 328 milésimos mais veloz que Schumacher.

Não há dúvida de que a maior potência do motor Renault V-10 da Williams, diante do Ford V-8 da Benetton de Schumacher, o ajudou, num circuito de retas longas e subidas íngremes, a conquistar o resultado no treino de classificação. Senna fez 1min15s962 e o alemão, 1min16s290.

Desafio bem mais complexo, no entanto, seria Senna fazer o modelo FW16 manter aquele ritmo extremo da volta lançada na classificação ao longo dos 305 quilômetros da corrida.

Desde a largada Senna manteve-se em primeiro, com Schumacher sempre muito próximo. Os dois entraram juntos no pit stop para troca de pneus e reabastecer o carro, outra grande novidade na F1 naquele ano.

A multidão que lotou as arquibancadas de Interlagos acompanhou com apreensão a parada de Senna nos boxes, líder, e Schumacher, segundo, na 21.ª volta do GP Brasil, que teve 71 no total. Dali, talvez, pudesse sair o vencedor da prova.

A vitória ou nada

A Benetton foi mais “eficiente” e o alemão saiu na frente, com Senna imediatamente atrás. Com um carro difícil de guiar, que pulava a cada ondulação do piso de Interlagos, e elas eram muitas, Senna foi obrigado a buscar o seu elevado limite para tentar ganhar a posição perdida.

- Corri para vencer, o segundo lugar não interessava, a mim e a essa gente toda nas arquibancadas - revelou.

Na tentativa de colocar sua Williams o mais próximo possível da Benetton de Schumacher na saída da Junção, Senna ultrapassou o limite do FW16 da Williams e rodou.

Ele sabia que sua velocidade no final daquele longo trecho de aceleração plena até a freada do S do Senna, com 1.200 metros de extensão, era mais elevada que a de Schumacher, daí a manobra arriscada. Precisaria sair da Junção encostado ao câmbio da Benetton para tentar a manobra de ultrapassagem na freada do S do Senna. Não havia DRS, bem lembrado, hein? Mas não deu certo.

Oito corridas mais tarde, explodiria um episódio que acabou por provavelmente justificar a sua perda da liderança, nos boxes, na corrida de Interlagos. A Benetton do companheiro de Schumacher, o holandês Jos Verstappen, parou para o seu primeiro pit stop no GP da Alemanha, na 15.ª volta, e de repente viu-se envolvido pelas chamas de cerca de 70 litros de gasolina que queimavam.

A válvula de fechamento da mangueira de alta pressão usada pela equipe manteve-se aberta, espalhando combustível para todo o lado. Ao encostar nos canos de escape, cujos gases fluem a cerca de 700 graus Celsius, a Benetton se transformou numa bola de fogo.

Pegos na malandragem

O que foi apurado pela investigação da FIA surpreendeu: os técnicos da Benetton haviam retirado um filtro do sistema de reabastecimento, a fim de aumentar a velocidade de fluxo da gasolina e tornar os pit stops mais rápidos. Burlaram a regra, portanto.

Uma impureza, que seria facilmente retida pelo filtro, manteve a válvula aberta, jorrando a gasolina para fora. Estava explicada aquela “eficiência” dos mecânicos da Benetton no GP Brasil, para que Schumacher saísse à frente de Senna no pit stop conjunto na volta 21.

O equipamento para reabastecer na Fórmula 1 era produzido por uma empresa francesa, Intertechnique, e todas as escuderias deveriam usá-lo, sempre sob regras rígidas determinadas pela FIA, sem alterá-lo.

Essa perda do primeiro lugar da corrida do Brasil, nos boxes, foi a causa básica do erro de Senna na Junção, já que ele queria de todas as formas a vitória diante da sua torcida. Ao longo daquele campeonato, também cresceram muito as suspeitas de que a Benetton utilizava um tão complexo quanto enrustido sistema de controle de tração, proibido a partir de 1994.

FIA sabia da falcatrua

Max Mosley, presidente da FIA, reconheceu, anos mais tarde, a impossibilidade de a entidade controlar, com os recursos técnicos da época, a existência ou não do controle de tração na F1. Em 2001, oficialmente o liberou por essa razão. Mas afirmou saber que uma escuderia o tinha já no começo de 1994. Não citou o nome.

O controle de tração justificaria em parte o excepcional desempenho do modelo B194, dotado com um motor V-8, capaz de desenvolver cerca de 40 cavalos a menos que o V- 10 Renault da Williams, no mínimo. Só a extraordinária competência de Schumacher como piloto, inegável, não era suficiente para explicar suas seis vitórias e uma segunda colocação seguidas no começo do ano.

Para você ter uma ideia da real condição da Williams com o FW16 no primeiro GP do ano, Damon Hill, o companheiro de Senna, terminou a prova em segundo, mas impressionantemente uma volta atrás de Schumacher, o vencedor. Apenas os dotes de velocista de Senna justificavam acompanhar o ritmo do alemão até abandonar a 16 voltas da bandeirada por errar na saída da Junção.

Veremos que a frustração de Senna e de milhões de torcedores se elevaria ainda mais na etapa seguinte a do Brasil no Mundial, o GP do Pacífico, no circuito de Aida, no Japão, disputado três semanas depois do evento em Interlagos.

Com o gostinho amargo de não ter somado nenhum ponto na sua estreia na equipe do “carro de outro planeta”, em Interlagos, Senna encarava a vitória na corrida de Aida como uma obrigação.

Piloto resignado

Já sem esconder sua preocupação com o modelo FW16 da Williams, Senna disparou:

- Todo mundo imaginava que a Williams iria arrebentar de novo, ganhando tudo, mas essa não era a minha opinião.

As suas 65 poles, ao longo dos 161 GPs disputados, fazem de Senna, para muita gente, o maior velocista de todos os tempos na F1. Essa sua capacidade de tirar tudo e mais um pouco do carro, em uma única volta lançada, assumindo riscos que poucos ousariam, deram a ele a pole no GP do Pacífico, como já ocorrera no Brasil.

Na etapa de São Paulo, a Benetton de Schumacher tinha, possivelmente, como citei, o controle de tração. Além disso, o equipamento de reabastecer do seu time, sem o filtro de gasolina, contribuiu, também (e pode, inclusive, ter sido determinante), para o resultado final da corrida.

Combinação de fatores

Costuma-se dizer nos acidentes aéreos que a queda de uma aeronave decorre da combinação de vários fatores. É preciso, segundo os especialistas, mais de uma causa primária para ocorrer o acidente, como por exemplo, a não observação correta dos procedimentos a serem tomados, por parte do piloto, em situações de pane.

Ou, ainda, uma pane seguida de outra, o que é muito raro, anulando os recursos de defesa do avião contra a condição difícil em que se encontra no ar.

A morte de Senna segue o mesmo modelo. Veja só o que aconteceu no GP do Pacífico. Também colaborou para elevar o clima de tensão e a necessidade de a Williams fazer algo rápido para reduzir a diferença de performance para a Benetton, do agora bicho-papão Schumacher.

Sem que ninguém até hoje compreendesse bem o porquê, o diretor de prova, o belga Roland Bruynseraede, impôs que, na volta de apresentação, os carros seguissem o safety car. Não chovia. Senna qualificou a decisão de “absurda”. Normalmente, o piloto que larga na pole dita o ritmo da volta de apresentação.

Os seus interesses são os mesmos dos que estão atrás dele, e por esse motivo, nessa hora, exige dos freios, para aquecê-los, procura também elevar a temperatura dos pneus, tudo sob velocidade compatível com as exigências de um monoposto de F1.

Naquele dia, 17 de abril de 1994, o safety car liderou o pelotão dos 26 que iriam largar na segunda etapa do Mundial a uma velocidade muito reduzida. Resultado: quando os carros alinharam para a largada, nada estava de acordo com as necessidades desses veículos, em especial a temperatura dos freios e dos pneus. Senna e Schumacher dividiam a primeira fila, a exemplo do GP Brasil.

Incidentes previsíveis

Pouco mais de 200 metros depois da largada, em que Schumacher, com a ajuda do possível controle de tração pulara à frente de Senna, o finlandês Mika Hakkinen freou e nada de sua McLaren MP4/9-Peugeot parar como deveria em condições normais. Foi a traseira da Williams de Senna que o segurou.

Hakkinen bateu no carro de Senna, lançando-o para a caixa de brita. Nicola Larini, que na Ferrari substituía Jean Alesi, convalescente de fratura de uma vértebra cervical num acidente durante teste em Mugello, completou o serviço de colocar Senna para fora da prova ao bater na sua Williams em plena brita. O italiano também ficou de fora do GP.

Williams, muito para trás

Sem adversários, Schumacher passeou na pista e impôs, de novo, quase uma volta de vantagem para o segundo colocado, Gerhard Berger, com a Ferrari 412T1. Hill abandonou por quebra da transmissão.

Em resumo: Senna tinha agora nenhum ponto, contra 20 de Schumacher. Mais: enquanto a Benetton havia de fato evoluído bastante de uma temporada para a outra, a Williams tomara rumo oposto.

Parte da torcida não enxergava os imensos problemas de Senna com o carro e não levava em conta o segundo desgaste do piloto com o experimentado na largada em Aida. O que importava era que Senna estava finalmente na Williams, seu tão sonhado time, e não vencera nenhuma vez diante de duas vitórias de Schumacher, àquela altura, com o abandono de Alain Prost da F1, no fim do campeonato anterior, o maior rival do brasileiro.

A pressão em cima da equipe Williams também começava a aumentar assustadoramente. Tudo o que Frank Williams desejara da Renault e dos patrocinadores da equipe, havia obtido. Senna custava muito caro para a época, estimados US$ 18 milhões por temporada. Na pista, contudo, a organização de Frank Williams não estava correspondendo.

O GP de San Marino, em Ímola, apenas 15 dias mais tarde, seria a grande oportunidade para que todos esquecessem os pesadelos dos GPs Brasil e do Pacífico. Desta vez, não poderia existir falhas. De ninguém.

G1