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Terça-feira, 05 de Março de 2024

Gangues governam capital do Haiti e podem estar prontas para derrubar o governo

Reportagem especial da CNN mostra como as gangues do Haiti tratam a vida humana como uma mercadoria, sequestrando e matando milhares de pessoas para assumir o controle de cerca de 80% da capital, Porto Príncipe

Vista de cima, a capital do Haiti, Porto Príncipe, ainda parece serena, com as casas pintadas de branco subindo íngremes colinas verdes no entorno uma baía cintilante. Mas pisar nas ruas esburacadas da cidade exige um cálculo cuidadoso do risco e da recompensa.

Gangues implacáveis dominam a cidade, atacando a população, transformando bairros em territórios criminosos de guerra e isolando o porto internacional do Haiti do resto do país.

Nessa cidade, os vídeos online mais compartilhados são frequentemente imagens de tortura, gravadas e publicadas por gangues para espalhar o horror e acelerar o pagamento de resgates a milhares de vítimas raptadas.

No mês passado, poucas horas depois de aterrissar no aeroporto Toussaint L’Ouverture da cidade, uma equipe da CNN começou a receber mensagens encaminhadas de contatos que compartilhavam as últimas imagens cruéis – uma mulher amarrada se contorcendo para longe das chamas enquanto seus sequestradores zombavam.

Foi um vislumbre do tormento viral diário da vida no Haiti, onde os frequentes protestos civis enfatizam que a população chegou ao seu limite. As gangues controlam 80% da capital, segundo estimativas da ONU, e lutam para tomar o restante.

Desde a semana passada, Porto Príncipe tem sido assolado por uma onda de ataques de gangues altamente coordenados, com grupos armados incendiando delegacias de polícia e libertando prisioneiros, no que um líder de gangue descreveu como um desafio direto ao impopular primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry.

No domingo (3), o governo do Haiti declarou estado de emergência depois de milhares de detentos aparentemente terem escapado da maior prisão do país.

“Optamos por tomar nosso destino em nossas próprias mãos. A batalha que travamos não derrubará apenas o governo de Ariel. É uma batalha que mudará todo o sistema”, disse Jimmy “Barbeque” Cherizier, um ex-policial que se autodenomina a figura de Robin Hood em seu território, em comunicado divulgado pela mídia local.

O paradeiro de Ariel Henry ainda não está claro, depois de uma visita ao Quênia na semana passada.

“O país não pode continuar assim”

Cada ano na memória recente tem sido pior que o anterior, cada catástrofe constitui um golpe para o estado haitiano em desintegração. No centro de Porto Príncipe, o histórico Palácio Nacional do país ainda está em ruínas devido ao devastador terremoto de 2010 no Haiti.

Agora, vários tribunais na área foram tomados e ocupados por gangues.

Muitos haitianos culpam o primeiro-ministro por ceder rapidamente terreno às gangues ao longo dos últimos três anos, ao mesmo tempo que se recusam a organizar eleições que trariam um novo governo e dariam ao país um novo começo. Henry e os seus aliados dizem que a atual insegurança tornaria impossível uma votação livre e justa, mas tais explicações pouco contribuem para apaziguar a indignação popular.

No início desse mês, quando surgiram rumores em um bairro de Porto Príncipe de que uma delegacia de polícia local seria fechada, moradores fartos rapidamente saíram às ruas, derrubando um ônibus e queimando pneus enquanto pediam a destituição de Henry.

“Ariel Henry tem que ir”, gritou um manifestante. “Estamos vivendo em total precariedade. Estamos vivendo no lixo, no esgoto. Não tenho nada, estou vazio. Não posso trabalhar, não posso sustentar minha família, não posso mandar meus filhos para a escola”.

Mesmo para alguns membros das gangues, a brutalidade da situação atual tornou-se insuportável.

“Vejo pessoas morrendo na minha frente todos os dias”, disse à CNN um recruta de uma gangue de 14 anos do bairro de Martissant, visivelmente perturbado, em uma entrevista no mês passado. “O que mais odeio é quando (outros membros de gangue) matam alguém e me fazem queimar o corpo”, disse ele.

Um de seus amigos, também membro de uma gangue, foi morto e queimado há poucos dias, acrescenta. “Eu não quero que isso aconteça comigo”. A CNN não revela o nome do adolescente devido a preocupações com sua segurança.

“O sentimento no local é que o país não pode continuar assim. O nível de violência a que as pessoas estão expostas é desumano”, alertou a representante especial adjunta das Nações Unidas no Haiti, Ulrika Richardson, em conferência de imprensa em Nova York, na quarta-feira (28).

80% de Porto Príncipe é controlada por gangues

No TikTok e no WhatsApp, contas exibindo armas e carros chamativos incentivam a afiliação a grupos como a gangue 5 Segond, 400 Mawozo (notório nos EUA pelo sequestro de mais de uma dúzia de missionários estrangeiros em 2021) e Kraze Barye, cujo líder tem quase US$ 2 milhões em recompensa por sua cabeça oferecidos pelo FBI.

As gangues do Haiti já foram vistas como instrumentos de bandidos para políticos poderosos e elites empresariais. Mas hoje, elas parecem ter se desprendido das coleiras; as gangues que invadem Porto Príncipe tornaram-se “empresários violentos” independentes, de acordo com uma análise recente da Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional.

Em um país empobrecido com pouco para explorar, as gangues tratam os seres humanos como mercadorias, raptando pelo menos 2.490 pessoas das ruas no ano passado para regastar em dinheiro em um negócio de sequestros em rápido crescimento, segundo dados da ONU.

As vítimas cujas famílias não podem pagar pela sua libertação são muitas vezes mortas, somando-se aos milhares de outras que perderam a vida devido a tiros indiscriminados, ondas de incêndios criminosos e outros abusos. A taxa nacional de homicídios no Haiti duplicou no ano passado, atingindo 41 homicídios por cada 100 mil pessoas, afirma a ONU – uma das taxas de homicídios mais elevadas do mundo.

A Polícia Nacional do Haiti, que possui uma nova e agressiva unidade antigangues, obteve algum sucesso na detenção de algumas figuras criminosas e na contenção da expansão de gangues em áreas-chave da cidade, incluindo junto à embaixada dos EUA. Mas com quase 100 gangues em crescimento na área metropolitana, a força simplesmente não tem poder de fogo ou treino para restaurar a paz no país, dizem as fontes.

De acordo com dados da ONU, a polícia haitiana está se demitindo em massa, com 1.663 agentes que abandonarem o cargo só em 2023.

À medida que a fome se espalha, a raiva popular aumenta

Recentemente, no bairro de Delmas, dezenas de mulheres da favela próxima, controlada por gangues, de Cité Soleil, fizeram fila para receber doações de alimentos do Programa Alimentar Mundial da ONU, distribuídos pela instituição de caridade católica St. Kizito.

Todas as pessoas abordadas pela CNN disseram que foram brutalizadas de uma forma ou de outra; uma delas contou ter sido estuprada por um membro de uma gangue, mostrando cicatrizes no braço devido ao ataque. Uma viúva disse que seu marido foi queimado vivo dentro da casa de sua família durante uma briga entre gangues.

“Eu estava em casa com minha família quando um grupo rival da nossa gangue local atacou o bairro. Tive tempo para correr com meu filho, mas meu marido estava muito lento atrás de nós. Eles incendiaram a casa com ele dentro”.

Mais de 300 mil civis ficaram desabrigados devido à guerra entre gangues, segundo a ONU.

Do outro lado do Haiti, na cidade costeira de Jeremie, no sul do país, um administrador da escola St. John Bosco disse à CNN que pelo menos 20 novos alunos chegaram da capital com suas famílias desde o início de 2024, alguns fugiram com tanta pressa que não trouxeram roupas nem documentos.

Mas nas zonas rurais, a ameaça é a fome. O controle das gangues sobre as principais estradas dentro e ao redor de Porto Príncipe retardou drasticamente o transporte de alimentos e combustíveis vitais importados em todo o país. Subornos exorbitantes são necessários para uma passagem segura.

Os preços estão aumentando de forma insustentável para uma população onde mais de 60% das famílias vivem com menos de US$ 4 por dia, de acordo com estimativas do Banco Mundial.

Um vendedor do mercado em Jeremie disse à CNN que o preço de atacado de um saco de açúcar havia saltado do equivalente a US$ 50 para US$ 150. O custo de um saco de arroz, um alimento básico na culinária haitiana, aumentou de US$ 40 para US$ 120.

O estresse de tentar sobreviver nessas condições está desgastando o tecido social. Em janeiro, manifestantes atacaram a escola St. John Bosco, tentando arrombar os seus portões e chegar aos estoques de alimentos doados pelo Programa Alimentar Mundial da ONU, segundo o administrador.

A comida era destinada ao almoço dos estudantes pobres – muitas vezes a única refeição do dia. Mas desde então, as crianças aterrorizadas não voltaram.

Raiva que transborda

Desde as ruas cheias de fumaça da capital até aos trabalhadores agrícolas que batiam as suas enxadas nos campos de Jeremie, a equipe da CNN ouviu repetidamente um refrão de raiva sendo cantado: Ariel kraze peyi a, Ariel kraze peyi a. “Ariel está destruindo o país”.

O primeiro-ministro Ariel Henry, neurocirurgião de formação, foi nomeado primeiro-ministro em 2021 com o apoio dos Estados Unidos, Canadá e outros aliados importantes, após o assassinato do ex-presidente Jovenel Moise.

O trabalho era um cálice envenenado; desde então, estimava-se que as gangues controlavam mais da metade de Porto Príncipe. Henry prometeu restaurar a ordem e realizar eleições, mas dois anos e meio depois, a primeira república negra livre do mundo está mais longe do que nunca desses fundamentos democráticos.

As últimas eleições no Haiti foram em 2016 e a maioria dos mandatos já expirou há muito tempo, deixando vagos cargos eletivos – incluindo a presidência e toda a legislatura.

É um cenário fértil para oportunistas políticos. No início desse mês, Guy Philippe, um líder rebelde que foi recentemente repatriado pelos Estados Unidos para o Haiti depois de cumprir pena por lavagem de dinheiro, apelou a uma revolução. Ao lado dele em alguns vídeos estavam membros da brigada de segurança do Ministério do Meio Ambiente do Haiti (BSAP), levantando temores de que uma força de segurança estatal se tornasse desonesta.

“Estamos lutando para mudar um sistema que não funciona para nenhum haitiano, no qual ninguém pode viver, não importa quem seja. Somos leais ao governo, mas ele não é leal a nós”, disse um comandante do BSAP, inspetor Odric Octina, disse à CNN.

“Qualquer revolução que possa libertar o povo haitiano dessa ditadura, estamos prontos para apoiá-la”, disse ele, acrescentando o alerta de que o BSAP não pretende virar as armas contra o governo e que a sua única ação até agora foi participar de protestos em Porto Príncipe.

Enquanto isso, as gangues não demonstraram escrúpulos em atacar diretamente as instituições governamentais.

Enquanto grupos armados atacavam a Penitenciária Nacional, um dos sindicatos da polícia do Haiti publicou uma mensagem desesperada no X no sábado (2), pedindo reforços. Se os detidos da prisão forem libertados para se juntarem às gangues já em liberdade, alertou o sindicato, “estamos acabados. Ninguém será poupado na capital”. Mas no final do dia a prisão foi atacada e acredita-se que mais de 3.500 prisioneiros tenham escapado, de acordo com estimativas da ONU.

A violência continuou durante todo o fim de semana, com o governo do Haiti anunciando no domingo o estado de emergência no departamento ocidental, onde está localizado Porto Príncipe, e um toque de recolher das 18h às 5h, em um esforço para “recuperar o controle da situação”.

Esperança em um uniforme estrangeiro

O dia 7 de fevereiro era a data em que um novo governo eleito deveria ter assumido o poder no Haiti, segundo um acordo entre o governo de Henry e uma coligação de figuras influentes da sociedade civil e do setor empresarial do Haiti.

Mas as eleições necessárias nunca foram realizadas, por isso Henry, no mês passado, só pode oferecer um raro discurso nacional pedindo paciência à medida que o prazo chegava e passava, dizendo aos cidadãos que é hora de “unir as nossas cabeças para salvar o Haiti”.

“A principal tarefa desse governo de transição é criar as condições nas quais as eleições possam ser organizadas”, assegurou aos telespectadores. “O meu governo interino está trabalhando de mãos dadas com a polícia para restaurar a vida normal no país. Temos consciência de que muitas coisas precisam mudar, mas precisamos fazer essas mudanças juntos e com calma”, disse ainda.

Um novo prazo de transição já foi proposto: na semana passada, os líderes do bloco regional Caricom afirmaram em um comunicado que Henry concordou em realizar eleições gerais o mais tardar em 31 de agosto de 2025.

Até lá, as melhores esperanças de Henry poderão residir em uma solução externa sobre a qual ele exerce pouco controle: a força de “apoio militar” liderada pelo Quênia, solicitada pelo seu governo no ano passado e aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.

“A razão pela qual o primeiro-ministro solicitou a resolução da ONU em outubro de 2022 é porque o departamento de polícia e outras forças não podem desafiar as gangues”, disse o conselheiro de Henry, Jean Junior Joseph, à CNN.

A raiva contra o governo pelo problema das gangues no Haiti é descabida, disse ele também, enfatizando o governo tem opções limitadas. “A situação é tão complicada que as gangues têm mais munição do que nós”, disse ele.

O gabinete do primeiro-ministro recusou o pedido de entrevista da CNN.

As intervenções militares estrangeiras são vistas com profundo ceticismo no Haiti, onde as forças de manutenção da paz da ONU são sinônimo de escândalos de abuso sexual e da introdução mortal da cólera. Ainda não está claro como irá funcionar exatamente a missão liderada pelo Quênia e que tipo de precauções em matéria de direitos humanos as suas forças irão tomar.

Ainda assim, as forças de segurança haitianas entrevistadas pela CNN dizem que acolhem com satisfação a ajuda. Os Estados Unidos – um dos principais destinos dos imigrantes haitianos que fogem da turbulência do país – também apoiaram ansiosamente a missão com uma promessa de US$ 200 milhões.

Pode não ser coincidência que a última onda de violência entre gangues tenha começado enquanto Henry estava em Nairobi, na semana passada, para assinar um acordo que sustentava a missão.

Os riscos são elevados: se os mais de 1 mil soldados prometidos forem entregues, espera-se que a força estrangeira represente um sério desafio ao controle das gangues – potencialmente renovando a esperança de mudança no país e ganhando tempo para o primeiro-ministro em apuros.

Mas se a missão não ocorrer em breve, especialistas e membros do governo alertam que a pressão crescente sobre a violência insuportável no Haiti poderá explodir.

CNN